O Tejo, os terraços fluviais que o marginam, as charnecas detríticas, tudo isto assente sobre um soco antigo em xistos e grauvaques, cortados por imponente crista quartzítica que forma as chamadas “Portas de Ródão” – eis aqui a singularidade que fez da região de Ródão um território de eleição, habitado desde a mais remota Pré-história.
É, pois, uma história antiga, telúrica e consistente, que temos para oferecer. Uma história feita de cruzianas e troncos fósseis, bifaces e raspadores, machados polidos e vasos de cerâmica, gravuras rupestres e epígrafes, mós e telhas, balas de canhão e gravuras reminiscentes das Invasões Francesas….
Possa a evocação da memória da terra rodanense, que nesta sala fazemos, servir de ponto de partida para um mais profundo conhecimento das nossas paisagens e das nossas gentes – que aí estão à vossa espera.
De Ródão guardamos a memória do diálogo com um passado que só encontra equivalente na majestade da paisagem que o encerra. Das casas do Salgueiral, às cristas que constituem a Serra; dos terraços e conheiras que o Tejo prodigamente distribuiu, ao rendilhado de oliveiras que mão humana pacientemente semeou; do sentir vivo de homens e animais, à conservação surda da sua imagem nos milhares de motivos artísticos que flanqueiam as margens do “grande rio”… tudo em Ródão nos faz esquecer as fronteiras entre passado e presente, Homem e Natureza, próximo e distante.
Luís Raposo (arqueólogo)
Nem sempre a paisagem de Ródão foi como hoje a vemos. No início da Era Paleozóica a área era toda coberta pelo complexo de xisto e grauvaques, que constituem o chamado “soco antigo”. Mais tarde, na mesma Era mas já no período Ordovícico (há cerca de 450 milhões de anos), ergueram-se as cristas quartzíticas que constituem a serra. Durante todo este tempo, não existiam rios de caudal regular, os mares chegavam à região e era nessas superfícies aquáticas que viviam os animas da altura, com destaque para as trilobites.
Este relevo manteve-se sem grandes alterações até à Era Cenozóica, quando, durante o Miocénico e o Pliocénico (25 a 2 milhões de anos) imensas camadas de areias grosseiras resultantes do desgaste das cadeias montanhosas antigas (as chamadas “arcoses das Beiras”) foram espalhadas por ação torrencial das águas, cobrindo por completo a paisagem até ao topo da serra de Ródão.
Finalmente, já na passagem para o período Plistocénico, começaram-se a instalar os rios, entre os quais o Tejo e o Ponsul, que acabariam por escavar as arcoses, pôr de novo à vista as cristas quartzíticas e atravessá-las mesmo nas chamadas “Portas de Ródão”. Formaram-se os terraços fluviais e surgiu uma nova personagem na paisagem rodense: o Homem, primeiro caçador e recoletor, depois agricultor e pastor, conforme se regista nos vestígios que deixou e se conservam nesta sala.
As condições geológicas da região de Ródão foram especialmente favoráveis à conservação de vestígios do mais antigo período da história humana – o Paleolítico. Nesta época, quando se deu a evolução desde as origens até ao estado atual (Homem Moderno ou Homo sapiens), a humanidade vivia apenas da caça, pesca e recolha de vegetais e as ferramentas eram feitas em pedra lascada, madeira ou osso.
Numa primeira fase – o Paleolítico Inferior, desde há 500 mil anos até há 100 mil anos – ainda não tinha sido descoberta a técnica de encabamento: o instrumento mais característico, o biface, era uma peça polivalente, usada na mão. Numa segunda fase – o Paleolítico Médio, entre há 100 mil e há 30 mil anos – surgiram as pontas de lança e uma maior variedade de ferramentas. Foi a época do Homem de Neandertal.
Numa terceira e última fase – Paleolítico Superior, entre há 30 mil e há 10 mil anos -, já com o Homem Moderno, as ferramentas tornaram-se cada vez mais especializadas, acabando por surgir o arco e a flecha, que no entanto só viria a ser amplamente usado no período seguinte, o Mesolítico, dominado pelas chamadas sociedades de arqueiros.
O complexo de Arte Rupestre do Vale do Tejo designa uma notável concentração de gravuras rupestres pré-históricas – figuras zoomórficas, antropomórficas, astrais e geométricas – disseminadas por cerca de 1500 rochas das margens do Tejo, ao longo de cerca de 40 km. Os principais núcleos gravados são limitados pelas embocaduras dos afluentes Sever, a montante, e Ocreza, a jusante, alongando-se ainda o complexo, esporadicamente por estes e outros afluentes e mesmo, para montante, no próprio curso internacional do Tejo.
As gravuras estão hoje, na sua maioria, submersas pelas águas das albufeiras de Fratel e Cedilho, tendo o seu levantamento arqueológico sido realizado entre 1972-78.
A simbologia gravada, refletindo uma forte vertente mitográfica, de onde está ausente o caracter narrativo, mesmo nas maiores composições, sempre emblematicamente abstratas, demonstra que o local deve ter sido usado, talvez durante milénios, como um vasto santuário a céu aberto, pelos povos pré-históricos da região. As Portas de Ródão poderiam ter sido para esses povos uma espécie de axis-mundi (eixo do mundo), em torno das quais se estruturavam simbolicamente os seus territórios.
Todos os investigadores concordam em inserir este complexo na chamada Pré-história Recente, mas dividem-se quanto à sua exata datação: para uns, as gravuras desenvolver-se-iam ao longo de um longo ciclo artístico, com fases sucessivas (de sub-naturalistas a esquemáticas), desde a época imediatamente pós-glaciária (Epipaleolítico) até à Proto-História (Idade do Bronze); para outros, tratar-se-ia basicamente de um só contexto cultural, relativamente curto e correspondente aos agricultores e pastores neolíticos, construtores dos numerosos monumentos megalíticos que existem em toda a região envolvente.
A introdução da agricultura e da criação de gado deram origem a um mundo novo. À economia de produção de alimentos, apoiada em novas tecnologias, entre as quais se salientam a pedra polida e a olaria, associou-se um aumento populacional e uma maior pressão sobre os recursos naturais. Novas crenças e símbolos têm a terra e a sua fertilidade como centro de atenção.
Em Ródão encontram-se abundantes vestígios de habitats e arquiteturas tumulares atribuíveis a fases finais do Neolítico e início do Calcolítico (IV e III milénios a.C.): povoados, como o da Charneca de Fratel, e monumentos megalíticos. Estes últimos são representados pelas antas, sepulturas em forma de câmara fechada, construídas com lajes de xisto fincadas no solo. Têm em geral um corredor e estão envolvidas por montículos artificiais de terra e pedras (mamoas).
No início do Calcolítico, surgem os primeiros povoados amuralhados (Charneca do Fratel). Tem início a metalurgia do cobre e do ouro, utilizados especialmente nas atividades artesanais e na afirmação de prestígio e poder social.
A arte rupestre do Tejo integra-se, em grande parte, neste período da Pré-História Recente, ao qual poderão também pertencer as rochas gravadas com covinhas.
No concelho de Ródão são escassos os vestígios atribuíveis ao final da Pré-História (Idade do Bronze) e à Proto-História (Idade do Ferro), um período de cerca de 2000 anos durante o qual se acentuam as redes de intercâmbio de longa distância e se estabelecem sociedade mais complexas. Podem atribuir-se à Idade do Bronze, segundo alguns especialistas, uma boa parte das figuras geométricas gravadas no santuário rupestre situado nas margens do Tejo. Por outro lado, achados isolados, como um machado plano de bronze, de proveniência desconhecida (coleção do Museu Municipal do Fundão), ou materiais de superfície recolhidos no Castelejo de Gardete são alguns dos vestígios materiais atribuíveis àquele período. Em áreas próximas (concelhos de Nisa e Castelo Branco) estão documentados diferentes tipos de habitats, já do final da Idade do Bronze, que traduzem um modo de vida decerto idêntico ao que teria existido no território rodanense. Referimo-nos a povoados de altura, em locais com valor estratégico, como são os casos do Monte de São Martinho (Castelo Branco) e da Serra de São Miguel (Nisa), ou cabanas situadas em espaços abertos, de peneplanície, como no Monte de São Domingos (Malpica do Tejo).
Atribuíveis à Idade do Ferro, conhecem-se em Ródão pequenos recintos amuralhados, situados no topo de cabeços envolvidos por apertados meandros fluviais como é o caso do Castelejo do Tostão. Estas posições parece relacionaram-se com a atividade mineira e foram mais tarde romanizadas.
O final da Idade do Ferro (séc. II a.C.) está assinalado pela descoberta de artefactos de prestígio, em prata, como os três colares entrançados, abertos, do Casal do Chão das Casas, hoje pertencentes ao Tesouro Nacional (Museu Nacional de Arqueologia).
O Domínio Romano em Portugal deixou marcas indeléveis na paisagem e no ordenamento territorial.
Em Ródão são abundantes e diversificados os vestígios deste grande impacte cultural. Merecem destaque diversos habitats (casais, granjas e vilas) relacionados, em grande parte, com a exploração agrícola dos melhores solos do concelho, os aluviões das ribeiras do Açafal, do Lucriz e do Ribeirão. Naqueles vales identificaram-se duas barragens de aterro (Lameira e Casas da Ribeira). Uma tigela em terra sigillata (Outeiro, Fratel) e uma inscrição funerária (Cadaveira, Perais) são dois dos raros vestígios de sepulturas daquela época.
Na região rodanense foi explorado cobre em galeria e ouro de aluvião no decurso da romanização. Os resíduos desta atividade, as conheiras ou conhais, amontoados de calhaus rolados de quartzito, são abundantes no concelho de Ródão.
A importância estratégica de Ródão é ilustrada pelos achados efetuados junto ao Tejo (na Foz do Enxarrique) e na zona do Tostão. Estes achados permitem vislumbrar o estacionamento de militares romanos durante a conquista do território e a consolidação do poder da República, nos dois últimos séculos antes de Cristo.
Do fim do domínio romano até à constituição do reino de Portugal não se conhecem vestígios expressivos na área de Ródão. No entanto, existem lendas, como a do rei Vamba, visigodo, materiais e topónimos (Alcaria, Alfrívida, Enxarrique) indicadores de suposta presença islâmica.
No decurso da Reconquista Cristã (séc. XII), dá-se a entrega das terras rodanenses à Ordem do Templo e a sua integração numa vasta propriedade, a Açafa. O monumento emblemático desse período é o castelo das Portas de Ródão, uma torre de vigia com uma muralha envolvente.
Açudes, levadas, moinhos de rodízio, lagares de azeite, muros de suporte de oliveiras ou simplesmente de divisão de propriedade, a par da arquitetura civil, constituem os elementos materiais mais expressivos da crescente humanização da paisagem rodanense.
O cobre, de que chegou a haver exploração industrial no sítio do Cobre, no Tostão, e o ouro, nos aluviões do Tejo e principais afluentes, foram explorados até ao séc. XX.
Ródão encontra-se num ponto de encontro de antigas vias. Dispunha de porto fluvial, já no séc. XVII. As antigas vias romanas e os caminhos da transumância deram lugar às modernas rodovias de orientação Norte-Sul. Ao longo do Tejo, os antigos caminhos (muros) de sirga deram lugar à ferrovia.
Do séc. XVII ao séc. XIX a insegurança volta a estas terras com a restauração da independência, a Guerra dos Sete Anos e as Invasões Francesas. Constroem-se torres de vigia ao longo do Tejo, o castelo medieval é reforçado e instalam-se bases de artilharia para impedir a passagem das tropas invasoras junto às Portas de Ródão.